25 agosto, 2006

De alcunhas, apelidos, apodos e similares - por Claudio Costa



Existem apelidos cuja origem são óbvias: "Leo", de Leonardo; "Kiko", de Francisco; "Zé" de José; "Bolão" para quem é gordo, etc.
Mas outros epítetos, a gente nem imagina como nasceram.
O mais legal, pra mim, é assistir, ao vivo e a cores, o surgimento de um epônimo, não é? E o melhor de tudo, o que parece impossível, é ver o prosônimo brotar, saber o por quê de sua adoção e... esquecer-se o nome do portador do dito cujo! Aí, sim, o acessório se torna o principal!
Pois não é que eu tenho um caso assim, verídico de jurar de pé junto que é verdade?
Duvide quem quiser, dou este direito: afinal, é na dúvida que se avança na ciência, dizem os cientistas. Os magistrados decidem: in dubio, pro reo. Já o Descartes concluiu: Cogito, ergo sum - mudado para dubito, ergo sum por alguns filósofos metidos a psicanalistas.
Digressão minha, bem sei, mas as associações pululam mais rápidas que os dedos que batucam este teclado aqui. Olho pro texto que surge na minha frente antes que saiba bem o que estou a escrever. Será efeito da sexta-feira que se aproxima? Taquipsiquismo?
Bom, voltemos ao caso da alcunha que tomou conta do dono e, hoje, não me deixa recordar seu nome de batismo.
Aconteceu no meu tempo de colégio interno, lá nas alturas da Serra do Caraça.
Dormíamos em dormitórios coletivos, uns 80 em cada um, terceiro andar do antigo prédio que, hoje, é só ruínas e museu.
Parece que os padres imaginavam que a gente era anjo, pois só tinha uma - eu disse "uma" - casinha maior. Você não sabe o que é? Apenas designação eufêmica para privada, retrete, vaso sanitário, trono, latrina, só isso!
Casinha menor tinha umas 8 - eu disse "oito", pros 160 jovens que dormiam lá em cima! Você já deduziu o que é casinha menor, né? Para os menos rápidos nas deduções lógicas e ilações fáceis explico: mictório, mijadouro, lugar pra fazer xixi! Até pra essas coisas se arranjaram apodaduras, flagra?
Então, continuemos.
Certa noite, um de nossos colegas estava meio que de piriri - ah, não me peça pra explicar o que é isso, senão esse caso não anda!
Acontece que outros alunos sofriam do mesmo mal e a fila crescia em frente à casinha maior! Descer três andares, à noite, num frio danado, nem pensar! Como resolver o premência evacuatória? O cólon descendente abastecia a ampola retal que, repleta, pressionava o esfínter e... (pára, isso aqui não é aula de fisiologia do intestino grosso! conta logo o caso, sô!)
Tá bom...
A necessidade é a mãe de todas as invenções, disse alguém. Se não disse, digo eu. O que fez o nosso colega?
Voltou à sua cama e abriu a pasta onde guardava sua correspondência - naquela época ainda se escreviam cartas. À tarde, rabiscara uma longa missiva pra família dando notícias, pedindo dinheiro e doces, etc. Faltava apenas colocar o selo no envelope já sobrescrito.
Que fez?
Agachou, despiu a bunda o estrito necessário e depositou no envoltório pardo a produção intestinal prestes a escorrer-lhe pernas abaixo. Com as folhas da carta, fez uma precária higiene loca.Tudo feito com discrição - só não controlou o odor que fez os vizinhos sonolentos desmaiarem de vez.
A tarefa a seguir era: como se livrar daquela "encomenda"?
Lembrem-se de que estávamos no terceiro andar?
Eureka! Pé-ante-pé o dito colega encaminhou-se à janela mais próxima e lançou na escuridão da noite o envelope devidamente repleto.
Dormiu em paz!
Dia seguinte, cedinho, após o café-da-manhã, saímos do refeitório e fomos para o pátio interno do colégio. Era o momento das brincadeiras, correrias, algazarras, idas às "casinhas" antes de subir para os salões de estudo.
Fila indiana, demandamos o pátio.
Eis que, bem ali no chão, rente à porta, banhado pelo sol radiante da manhã, lá estava o envelope pardo, semi-aberto, expondo a "obra" lançada na véspera. Minha imaginação de hoje me força a dizer que as moscas se locupletavam e zumbiam felizes.
Risos, espanto, caras de nojo.
Alguns, narinas tapadas, aproximaram-se e conseguiram ler:
"Remetente: fulando de tal".
A notícia se espalhou. Foi fulano! Este, a princípio, negou. Mas a prova estava lá, legível, nome e sobrenome!
E nasceu o apodo!
Daí pra frente, fulano só era chamado de "Remetente". No começo, não atendia, mas depois... até os padres aderiram. Enfim, a capitulação: solidificou-se o cognome; não houve retorno e meu colega passou a se chamar "Remetente". Ele próprio se apresentava assim aos novatos.
O nome próprio se perdeu na poeira do tempo.
Até hoje.


Cláudio Costa é médico, Coord. Resid. Psiquiatria da Infância e Adolescência
FHEMIG-Belo Horizonte-MG

24 agosto, 2006

Ignorância e Poder – por Angela Merice Lemos Sales

Vejo muitas pessoas comentando sobre a ignorância do povo que, de acordo com as pesquisas, votaria em Lula, se a eleição fosse hoje. Penso que a resposta das pesquisas de opinião são respostas a uma questão maior, mais ampla. Na verdade, não se trata de escolher uma pessoa para "governar" o País. A nossa questão é a cegueira em relação ao fato de sermos todos um. Não ficamos reféns da ignorância. Somos parte dela, apenas o lado leitor, informado, da ignorância. Quando reafirmamos a nossa crença de que a escolha de um presidente, seja a escolha feita por "consciência", "informação", "seriedade", "ignorância", "indiferença", vai mudar o País, esta é apenas uma crença, sem respaldo nos fatos. A máquina do Poder, tal como está construída, está pronta para absorver qualquer um que pouse por lá. Os mecanismos desta máquina já estão programados para a corrupção.
Por outro lado, a educação está falida. Não é só um problema de corrupção, de falta de investimento em salários de professores ou em escolas. O currículo do ensino é completamente esquizofrênico. Seja nas escolas públicas ou nas particulares, há um acúmulo de conteúdos que se tem que aprender, engolir, para conseguir os diplomas certos e "progredir" na vida.
Será que aprender a extrair uma raiz quadrada aos onze anos nos torna pessoas melhores? E equações de segundo grau aos quatorze anos nos dá mais sabedoria? O ensino é uma massa de conteúdos descontextualizados, que são um desrespeito à inteligência de nossos filhos. Não se desenvolvem as capacidades de refletir, criar, intuir, construir o próprio pensamento. O importante é dar as respostas certas. Não se valoriza os potenciais criativos e imaginativos individuais, mas o quanto o sujeito se adapta ao esquema escolar.
Para a classe média, o importante é passar no vestibular. Depois, fazer especializações, mestrados, doutorados, saber tudo sobre um nada, super-especialistas de nada. Não aprendemos a ser humanos. Não aprendemos a ser solidários. Não valorizamos a verdade, a justiça, o amor, a criatividade, o respeito ao outro (seja ele quem for), a gentileza, o discernimento, a intuição, como bens humanos básicos a serem estimulados e desenvolvidos em casa e na escola. Isto não é importante. O importante é dar as respostas certas, ser treinado ou adestrado para o mercado de trabalho, seja em que nível for (lixeiro, torneiro mecânico, médico, juiz).
Não vejo mais sabedoria no diretor de uma instituição financeira, com mestrado em finanças, que no jornaleiro da minha rua. Qual dos dois vai votar melhor? Não importa, não é a questão. Que importa morar numa casa de quinhentos metros quadrados, sair à rua num carro blindado, sem olhar para os lados, sem saber o que sentem e pensam os outros seres humanos que estão nas ruas? Eles só têm valor como voto, que pode eleger um Lula ou um Alckmin.
E aí o círculo se fecha sobre si mesmo. A ignorância e insensibilidade de uns em relação ao estado de outros se junta à ignorância e insensibilidade de outros em relação ao que se passa nos altos círculos do poder. Um litro de leite a mais no fim do mês está muito mais próximo e é mais vital do que uma raiz quadrada. Eles estão certos. Não são loucos. A situação que vivemos tem uma lógica muito mais complexa (do ponto de vista do sistema) ou muito mais simples (do ponto de vista do povo "ignorante") do que imaginamos. Quem é o sujeito mais miserável: aquele que alimenta a família catando lixo ou aquele que, tendo feito uma carreira acadêmica completa, tendo todas as necessidades básicas e secundárias satisfeitas, rouba, enche cofres de dinheiro no exterior? Quem é mais humano? Quem é mais louco? Quem é mais "pé-no-chão"? O que foi ensinado ao catador, e o que foi ensinado ao Doutor? O que aprenderam? Quem é mais "humano"?
Só consigo pensar numa saída para estas situações numa mudança em cada indivíduo. Sensibilidade, se importar com quem está em volta. Família, vizinhos, o faxineiro do prédio, o menino que vive na esquina, olhar em volta e lidar com gentileza com um mar de seres humanos que nem vemos, que não olhamos nos olhos, a quem nunca damos um sorriso. Agradecer ao menino, com um sorriso e umas moedas pelo serviço prestado de limpar o vidro do carro no sinal. Você vai dizer que está errado, que este menino não deveria estar ali, que não quer estimular este tipo de situação, já sei. O problema é que, na REALIDADE, ele está ali, e com fome. E precisa ser tratado como ser humano, precisa ser olhado como ser humano JÁ, não quando acabar a corrupção, não quando todos forem alfabetizados.
Se olharmos as pessoas teoricamente, alimentamos a esquizofrenia da nossa sociedade, levando uma vida virtual, entre os que passam necessidades reais e os que roubam de verdade. Proponho uma revolução pelo olhar, pela sensibilidade, pela gentileza, pelo sorriso, pela boa vontade, silenciosa, nas vizinhanças, sem preocupação de levantar bandeiras, passeatas. Proponho uma revolução silenciosa só com quem cruzar o nosso caminho, no cotidiano. Um olhar sorridente e gentil tem um poder de transformação e contágio tão grande que até dá para entender porque não está nos currículos escolares. Como seria possível controlar e dizer o que deveria pensar um Ser Humano com todas as suas capacidades desenvolvidas? Proponho que nos aceitemos mais, que nos amemos mais, que sejamos mais humanos JÁ!

Angela Merice é professora, formada em Comunicação Social pela UFRJ e em Consultoria Educacional pela UNIFAZ-BA, morando atualmente em Salvador/BA.

Imagem: Foto de Bart - http://www.olhares.com/

21 agosto, 2006

O Rio da Minha Aldeia - por Pablo Capistrano


Sempre fui fanático por mapas. Uma das imagens mais recorrentes da minha primeira infância são os mapas de um imenso Atlas branco que minha mãe ganhou após ter comprado todos os fascículos da Enciclopédia Barsa. Talvez por ter nascido numa cidade litorânea sempre desconfiei do horizonte. Sempre desconfiei que, depois do horizonte, não poderia haver um abismo, um buraco, uma linha divisória onde se lê uma placa com os dizeres: “aqui acaba o mundo”.Então eu passava um bom tempo da minha vida de criança olhando os mapas de lugares estranhos e distantes. Foi assim que eu aprendi o nome de quase todas as capitais, os nomes dos desertos, dos oceanos e das cadeias de montanhas. Lembro que tinha medo da Ásia. Não sei porque, mas eu tinha medo da Ásia. Ela era muito grande, muito estranha e muito distante. A África também me assustava, mas, talvez devido algum impulso genético também me deixava fascinado. Especialmente a costa oriental. Sempre que eu olhava o mar meu pai dizia: “Do outro lado é a África”. Por causa do meu bisavô escravo (Antônio Fernandes de Macedo, negro alforriado pela lei da princesinha brasileira) sabia que a África guardava algo meu, assim como sabia também que algo meu estava em Portugal.
Foi olhando o mapa de Portugal que eu vi o nome daquele rio.
Não sei qual é seu sobrenome, amigo leitor, mas deve ser estranho para você também ter no seu nome, o nome de um rio. O meu rio é o rio Paiva. Afluente do rio Douro, nos limites entre a região das Beiras e a região Norte de Portugal. Tem gente que tem nome de árvore, outros de bicho, eu, tinha o nome de um rio. Mas esse deveria ser um rio muito pequeno porque ninguém no Brasil sabia que ele existia. Conheciam o Tejo, alguns conheciam o Douro, mas o Paiva... nem minha avó que me respondia: “nossa família veio de Portugal”; de onde? “não sei... só sei que é de Portugal”; quando? “Não sei... só sei que faz tempo”.
Na verdade a região de Paiva parece ser uma importante região desconhecida de Portugal. Isso porque ela não aparece no meu guia de viagens publicado pela Folha de São Paulo e porque ninguém que eu tenha perguntado em Lisboa sabia onde ela ficava. Se a Folha não sabia que a região de Paiva existia e ninguém em Lisboa também sabia, é porque, talvez, de um modo ou de outro, ela não existisse mesmo.Na Internet, num site de famílias portuguesas o rio de Paiva não é citado. Sobre a família e o brasão eles dizem apenas: “o seu nome é de raízes toponímicas, pois deriva do nome da terra de Paiva”. O nome da família parece ter surgido como apelido com um tal João Soares de Paiva. Um trovador que viveu entre 1275 e 1325. Nascido setecentos anos antes de mim, João Soares de Paiva parece ser o primeiro Paiva registrado na história. Nesses setecentos anos, o nome desse rio atravessou o mar e foi parar na Serra do Martins, no oeste de um estado minúsculo do nordeste do Brasil. Como isso pode ter acontecido é um mistério dos mais densos. Mas o fato de não se saber muito sobre a existência desse rio não implica que, de um modo ou de outro, essa não seja uma região importante.
Afirma a Internet (essa grande matrix cheia de porcarias geniais) que a região de Paiva teria refugiado as primeiras tribos celtas que habitavam Portugal antes mesmo da invasão romana. Esses celtas adoradores da virgem teriam ido parar lá depois da invasão moura, e teriam formado um núcleo de resistência cristã, contra a influência semítica. Paiva seria então uma região de fronteira. Um limite que separava os mundos.
Comprei um mapa mais detalhado e teci um plano de viagem até um lugar chamado Castelo de Paiva. Atravessaríamos o Porto e pegaríamos uma estrada pela margem norte do rio Douro. Uma hora de viagem ou um pouco mais e chegaríamos no castelo. Ele fica bem na confluência do Douro com o Paiva. Lá eu encontraria meu rio, meu castelo e um bocado de parentes que me receberiam com festa e poderiam me responder a estranha questão: “como eu fui parar em Natal?”. (Continua na próxima semana)

17 agosto, 2006

Máquinas que falam – Por Carla Rodrigues



Boas compras e divirta-se, anuncia a voz metálica da máquina no estacionamento de um grande shopping no Rio. Não esqueça do cinto de segurança, ordena a mesma gravação, na saída.
Faz pouco tempo escrevi aqui como me sentia quase um robô, tendo as máquinas como extensão dos meus dedos. Estou sempre conectada – wi-fi e notebook em casa, email no celular, palmtop na pasta de trabalho –, o que me faz parte permanente dessa grande rede de comunicações.
Enquanto prestava atenção nessa robotização, descobri também a humanização das máquinas. O meu programa de anti-vírus fala quando pretende chamar minha atenção. Anuncia upgrades e dá outras providências.
Já andei em elevadores que também conversam e avisam o andar no qual o passageiro pretende desembarcar.
Mas nada é mais terrivelmente humano do que a atendente virtual da Telemar. Entonação impressionantemente parecida com a de uma mulher simpática, quase sensual, ela é absolutamente detestável com aquele falso “Olá, sou sua atendente virtual”.
Ainda na Telemar, é uma gravação que liga para informar se a conta está atrasada (a minha está porque estão me cobrando indevidamente uma ligação para Angola que eu não fiz).
Nesse planeta cada vez mais calorento, somos nós, seres humanos, que estamos entrando em extinção.

Carla Rodrigues é colunista da Revista Eletrônica No Mínimo. Crônica publicada em 13/08/06.

Imagem: http://www.wisarts.com/lib/one/help.jpg

14 agosto, 2006

Saudades do amor - por Pablo Capistrano

Sempre desconfiei de Romeu. Acho que ele nunca amou Julieta de verdade. Romeu amava a morte, porque tem um certo tipo de amor, um certo tipo de paixão que é para a morte. Aliás, poucas vezes no ocidente a morte ganhou contornos tão nítidos como nas peças de Shakespeare. Poucas vezes a profundidade psicológica da morte foi estetizada de um modo tão convincente. Mas o amor que é para a morte (como o de Romeu) também é um resto, uma sobra moderna de uma experiência religiosa. Da pulsão de adoração de uma grande deusa perdida, oculta pelos véus do monoteísmo judaico e retirada do seu casulo inconsciente quando Freud tentou dar sua versão shakespereana de Édipo.
Mas nós empobrecemos o amor. Reduzimos sua abrangência criando uma super palavra (amor, love, Liebe). Super palavras são assim. Elas misturam coisas diferentes e confundem mais do que esclarecem. Os gregos tinham várias palavras para o amor e por trás de cada palavra eles apontavam para um amor diferente. Havia o amor doença (pathos) que matou Romeu e Werther; o amor divino (ágape) que cegou Paulo de Tarso; o amor pulsão de vida (Eros) que fez você que me lê, nascer; o amor afinidade (philos) que unia amigos em torno de um bom vinho nos simpósios filosóficos da antiguidade. Uma super palavra como “amor” confunde tanto quanto causa dor, mistura o que deveria estar separado e separa, muitas vezes, o que deveria estar unido. Sem saber qual o amor que se ama, sem sentir o amor que se quer sentir, muita gente oscila numa linha que separa a solidão e o êxtase. Filhos perdidos de um mundo arruinado por imagens intangíveis, os órfãos do amor caminham pela terra. Tecendo suas tapeçarias particulares de desejos, morrendo e renascendo a cada dia. Olhando toda manhã em busca da porta que possa nos levar de volta para casa.
Rigorosamente planejado para afogar os sonhos humanos, o mundo tem ritmos estranhíssimos. Nos arrebata e nos lança de volta à planície dos desejos. Nos oferece as chaves e, às vezes, por pura falta de sentido, muda a fechadura.
A glória de Romeu foi ter encontrado uma Julieta que topasse morrer com ele, porque o amor que ele amava não era um amor para a vida. Se suas famílias tivessem chegado a um acordo moderno de vontades, se tivessem aceitado a visão contratual do casamento nesse mundo de mercado liberal; se tivessem ajeitado as arestas de seus embates comerciais e resolvido a disputa que separava seus filhos, ainda sim, haveria uma tragédia. Romeu morreria de saudades do amor. Seria possuído por um fogo furioso e ressentido e terminaria numa vara de família, discutindo com Julieta a percentagem da pensão que deveria pagar para cada um dos filhos.
O mundo está cheio de Romeus. Cultores da fé da velha deusa. Devotos da religião do amor que é doença, euforia e arrebatamento. Às vezes eles se tornam grandes poetas, às vezes homens secos de olhos foscos. De vez em quando eles se transformam junto com o amor, mas, às vezes eles também afundam com o seu peso. Porque Ginsberg já mostrou quase tão bem quanto Shakespeare que o peso do mundo é o amor. “Nenhum descanso sem amor/ nenhum sono sem sonhos de amor/ quer esteja eu louco ou frio/ obcecado por anjos ou por máquinas/ o último desejo é o amor”.


Pablo Capistrano é escritor e professor de filosofia. Capistrano assinará a partir de hoje no Miolo de Pote a coluna da segunda-feira.

Imagem: Amor e Psyche

10 agosto, 2006

Vantagens Literárias - por Dora Vilela


Às vezes, fico pensando como é difícil para um escritor de país subdesenvolvido e sem longo passado encontrar coragem para escrever sobre sua terra. Digo escrever de uma forma literária e artística. Ou então querer competir com escritores de países tão antigos como os da Europa, com aquele acervo cultural por trás dos ombros.
Para um medíocre escritor francês, ao redigir suas memórias, por exemplo, basta evocar a infância nos becos de Paris, e já o relato se torna interessantíssimo e fascinante. Alguém que o lê, põe-se logo a imaginá-lo um cidadão do mundo, uma pessoa letrada, alimentada desde bebê pela civilização francesa, versejando desde os tenros anos, ou orando à Notre-Dame antes de dormir.
É ainda agradável seguir os passos de qualquer inglês, nascido em Londres, contando, mesmo em péssima literatura, seus momentos de juventude nos “pubs”, em meio ao “fog”londrino, sendo despertado pelo toque do Big Ben, na manhã seguinte.
A narrativa reporta o leitor a símbolos tão prenhes de significado próprio, que só o fato de serem mencionados já torna a leitura atraente.
As pessoas se deleitam, repentinamente, com estes escritores, intuindo, de certa maneira, que, se eles não disserem nada de tão profundo ou original, pelo menos têm em comum a terra natal de pensadores geniais que atravessaram os ecos dos séculos.
A um autor romano, também é o bastante falar de suas lembranças de “bambino”, distraidamente brincando perto do Coliseu, para se ficar embasbacado diante de alguém que respira, desde o nascimento, o cheiro de monumentos de 2 000 anos de idade.
Já o pobre escriba, cidadão de país de recente vida, terá a árdua tarefa de torná-lo conhecido, escrevendo com extrema originalidade, destreza e arte. Tocar-lhe-á a missão de fazer com que um dia, por exemplo, a simples menção da Praia de Ipanema sugira ao mundo as mesmas fantasias que tal nome acende no coração de um carioca da gema.
Mas, especulações à parte, não deixa de ser verdadeiro que tais escritores estrangeiros, mesmo se aproximando de uma parva mediocridade, contarão sempre com a vantagem de despertar o interesse de leitores de outros países que terão, no mínimo, ouvido falar dos venerandos tesouros europeus.
Não chegam a ser um exagero estas afirmações, porque comigo mesma já aconteceu de ler o livro todo, de um autor francês, obcecada pelas citações de recantos do país, comprazendo-me em um texto de conteúdo banal e fútil.
Meu suspense ficou por conta dos locais, carregados de significados para mim, esperando emergirem dali os pensamentos profundos do autor, os quais, infelizmente, até o final, não vieram à tona. Porém, o que quero dizer, é que fiquei presa nessa espera, o que não me ocorreria no caso de ler um escritor medíocre, talvez do meu próprio país.
Poderão até me contestar esta tese, que me veio à mente, justamente por ocasião da leitura do tal livro francês. Ela merecerá talvez o riso de quem a levar a sério.
Contudo, digam-me: quem já conheceu de perto e sentiu a estranha magia da beira de um rio Sena ou dos becos de Paris, não estremece só em ver uma fotografia com estas cenas?
É a demonstração da minha tese. Se não fui, porém, devidamente clara na minha teimosa exposição, não há problema algum.
Porque bom mesmo é ler os grandes escritores, de qualquer país, de preferência a gente recostada em uma rede, presa às arvores de nosso solo.

Dora Vilela - Professora de língua portuguesa e francesa – São Paulo

Imagem: www.poesialusa.blogs.sapo.pt


02 agosto, 2006

Armorial X Rinocerontal - Por Carlos Gildemar Pontes

Numa discussão sobre cultura não me venham falar de
vamos falar e procurar conhecer pensadores como o nosso
poetadaporramaiúsculoparaibanobomdebriga.nordeste.comorgulho.br
Concordo com o Ariano Suassuna e não tenho medo de defender as raízes do povo nordestino e da língua-filha da portuguesa. Tem gente que tenta agradar aos bêbados e ao pessoal do AA e termina tendo crise de labirintite, em cima do muro da cultura. Eu aprecio cultura brasileira, nordestina, cearaibana, icoense, patoense e dos confins dos sítios mais esquecidos. É tanto que considero universal qualquer arte rudimentar ou refinada do espírito, seja ela produzida na caótica São Paulo ou no distrito de Estaca Zero, na região de Taperoá.
As contradições do homem vêm desde o autraloptecus e não podem ser transferidas para o artista, que se utiliza da sua função para marcar uma posição política definida. A obra do artista Ariano representa as idéias do homo taperoalensis e universal. Quem produziu A pedra do reino e O Auto da Compadecida tem o direito de esbravejar contra a cultura enlatada americana ou brasileira.
Que eu saiba, ele nunca foi contra os grandes gênios da humanidade de nenhum país. Mesmo que eu goste das músicas do Maicou Géquisson (e eu gosto), o Ariano tem razão. Se o povo não conhece todas as músicas, não conhece música.
Num país que produz grãos que dá para matar a fome de meio mundo da humanidade, se criar fome zero e pib negativo pra dar satisfação ao Banco Mundial e ao FMI, e a gente ainda ter que dar lucro à indústria cultural americana, paciência, está faltando uma boa dose de criticidade a um bocado de alienado deste país com suas províncias inchadas de puxa-sacos e apedeutas.
Se o Ariano está gagá, como insinua uns rinocerontes se coçando em loja de cristal, e não satisfaz a meia dúzia de intelectualóides de fachada, o que fazer das páginas escritas por estas sumidades que nem sequer leram a poesia armorial suassûnica?
Sei que daqui a cem anos lembraremos do Ariano, e dos rinocerontes?
- Por esta época já estarão extintos.

Carlos Gildemar Pontes - Cearense, poeta e escritor. Editor do Folhetim Literário Acauã. Colaborador do Miolo de Pote

Imagem: Ariano Suassuna http://www.azulcalcinha.com.br