30 outubro, 2006

Nunca diga sempre - Por Pablo Capistrano


No final de Novembro de 1974, em pleno inverno alemão, o cineasta Werner Herzog recebeu um telefonema. Um amigo que morava em Paris trazia uma notícia terrível. Lotte Eisner, crítica de cinema e responsável pelo impulso necessário ao primeiro longa de Herzog, Sinais de Vida (1969), estava morrendo. Herzog não pensou duas vezes. Pegou uma bússola, um casaco, um par de botas novas e uma sacola com alguns pertences e iniciou uma peregrinação que o levaria, à pé, de Munique até Paris entre os dias 23 de Novembro até 14 de Dezembro daquele ano.
Por algum motivo estranho, por alguma fé avassaladora no mundo e em seus mistérios, Herzog acreditava que poderia salvar a vida de sua amada amiga, bem mais velha do que ele. Enquanto ele andasse, ela permaneceria viva. Enquanto ele enfrentasse o frio e o vento gelado do inverno, ela se manteria no mundo, porque não seria possível, não seria nem justo nem certo que ela morresse antes de vê-lo uma última vez.
Sempre que eu releio os registros da viagem de Herzog, me pergunto o porquê de, em alguma esquina dessa vida, o homem ter se acostumado com o sempre. Sempre vivo, sempre presente, sempre à disposição. Talvez como uma forma de manter firme nossa própria sanidade, criamos a alegoria do sempre. A metáfora da eternidade. A sensação de que as coisas, em sua radicalidade, não passarão. Talvez seja esse um erro de juízo acerca da seqüência dos fatos no mundo, ou mesmo uma sensação forte, derivada da única experiência possível que temos do tempo: O presente.
Sim porque, a rigor, todo o tempo que experimentamos é o absoluto e radical agora. Lembramos do que ocorreu ontem, no instante presente; sonhamos com o que vai ocorrer amanhã, no instante presente. Não sentimos o futuro, assim como não experimentamos, mais uma vez qualquer, o passado. Confinados no presente, somos apresentados à eternidade, que nos salva e nos consome, nos arrebata e nos destrói. Somos livres quando mergulhamos no presente e absolutamente escravos, quando não conseguimos sair dele. Acho que estou escrevendo isso porque hoje, mais do que os outros dias e as outras noites de minha vida, eu tenho medo do futuro. Tenho medo de que o sempre seja apenas o reflexo do giro do tempo na minha mente perturbada pela sensação de fragilidade dos dias em que vivemos.
Como Herzog, não queria que o presente passasse. Porque, se só ele existisse, eu seria livre e eterno, imune à qualquer dor e a qualquer sofrimento. Como Herzog, em sua luta para tornar o futuro um ponto mais distante, para retardar aquilo que vai acontecer de qualquer forma, para evitar que sua amiga morresse de uma doença fatal, gostaria de ter uma chave oculta, num gesto radical e sem sentido, como só os gestos de uma alta magia sabem ser radicais e sem sentido, para que meu presente não passasse. Mas as lições de meu tempo, a mensagem desses dias assombrados por tantos presságios ruins, me ensina a nunca dizer sempre. A nunca acreditar naquilo que minha experiência me mostra. A não aceitar que o agora seja apenas um ponto irreal, no meio de um fluxo que me leva do passado para o futuro. O tempo me atravessa. E meu Eu, atravessado pelo tempo, se metamorfoseia sem parar em todos os infinitos “agoras”, que a eternidade da minha vida me apresenta. Nunca diga sempre, se você não pode realmente, acreditar nele.

Pablo Capistrano é escritor e professor de filosofia. Escreve às segundas no Miolo de Pote.
Site do autor: www.pablocapistrano.com.br

Imagem: http://www.filmreference.com/images/sjff_02_img0696.jpg

29 outubro, 2006

Os dois lados da moeda - Por Patrick Gleber



A possível ducha de votos que Luiz Inácio Lula da Silva promete tomar nesse segundo turno não terá o condão de colocar uma pedra sobre as investigações criminais envolvendo o PT e a campanha do presidente. A Polícia Federal e o Ministério Público não são instituições submetidas ao cronograma do Tribunal Superior Eleitoral. Urna é para eleger, polícia é para investigar, promotoria é para acusar e juiz é para julgar. E a imprensa é para contar às pessoas o que está acontecendo nessas esferas de poder. As coisas são (ou deveriam ser) simples assim.

O país tem o direito de conhecer todos os detalhes da operação dossiê. Ou de qualquer outra acusação ou dúvida que envolva este governo. Ou governos anteriores. Essa é a regra do jogo da democracia. Mas, se a regra está em vigor, ela vale para os dois lados. Para as duas faces da moeda. Se o julgamento político das urnas não tem o poder de abolver acusados de crimes, tampouco o julgamento político da opinião pública deveria ter o poder de condená-los. Se a maioria eventual nas urnas não apaga a folha corrida de ninguém, tampouco a maioria eventual no tribunal político de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (ou de um plenário, ou de um editorial de jornal) deveria ter o poder de condenar alguém em última instância. Aí parece residir a inconsistência de certas teses. Citações em relatórios de CPIs são tratadas como condenações políticas transitadas em julgado pelos mesmos que recusam ao eleitor a prerrogativa de "anistiar" alguém na base do voto. É o princípio orwelliano de que todos são iguais mas alguns são mais iguais do que os outros.

O linchamento político é legítimo, dizem, se a maioria assim o desejar; mas não aceitam a legitimidade da purificação quando a maioria assim se manifesta. Cassar o mandato de alguém sem provas é razoável, dizem, para efeito de profilaxia política; mas os que se arrogam o direito quase divino de suprimir, sem provas, a vontade do eleitor (expressa num mandato popular) não dão ao eleitor o direito que pedem para si. Quer saber das convicções democráticas de alguém? Tente aferir o quanto ele respeita os direitos de quem está na outra trincheira.

Patrick Gleber
é paraibano da cidade de Cajazeiras, estudante e editor do http://www.blogdopatrick.blogspot.com/

28 outubro, 2006

Doutor da Praça - Por Crys


Hoje fui pra minha caminhada costumeira na Praça da República. Já passava das seis e meia da manhã, estava uma manhã tranqüila... Pelo menos é o que parecia a princípio.

O tempo estava nublado, o céu com algumas nuvens escuras (nessa época do ano as chuvas são mais constantes em Belém), apesar das nuvens se mostrarem no céu, eu tinha esperança que o sol brilhasse. Durante a caminhada, olhava atenta a tudo que se passava em volta da praça com suas mangueiras majestosas formando um túnel verde.

Ali na praça sempre há concentração de artesões, fazendo bijuterias. Em uma das voltas da caminhada vi ao lado de um artesão uma mulher sentada que de repente caiu para trás e bateu a cabeça na calçada. Nos primeiros minutos parei e fiquei olhando enquanto os outros artesões corriam em socorro à mulher.

Vi também que se afastaram tão rapidamente de como se aproximaram. Não entendi nada. Mas fiquei curiosa e me aproximei pra ver o motivo pelo qual se afastaram de lá. Afinal, parecia que a moça precisava de ajuda. Foi então que percebi o seu companheiro tentando abrir os olhos da moça desfalecida com força, percebi também, que a mulher estava grávida de uns seis meses mais ou menos. O infeliz do seu parceiro empurrava um garotinho de uns quatro aninhos e pedia insistentemente que ele puxasse o pé da mulher.

Pelo sotaque, parecia ser nordestino. Embravecido ele puxava os olhos da mulher com tanta força que parecia que ia rasgar. Lá fui eu, completamente incomodada com a situação, me aproximei pra prestar a minha solidariedade, falei:- Ei moço, a moça está desmaiada, não adianta forçar o olho dela pra abrir, porque não vai acordar desse jeito, é melhor telefonar para o 192, eles vem buscá-la.O homem arregalou dois "olhões" de ódio em cima de mim e falou:- Vai morrer pra lá sô, eu não quero opinião de ninguém, eu sei que tô fazendo.Falava com tanta raiva que eu me assustei e me afastei de imediato.Alguns metros do casal, uma outra moça sentada, fazia uns brincos e ao notar minha preocupação, sem me fitar e de cabeça baixa, falou:- Não adianta não moça, esse parceiro da Diana é um grosso, mas nós já telefonamos para ambulância.Fiquei ali, sem me afastar do local, aflita esperando o socorro chegar pra ver os acontecimentos finais.

Minutos depois, chega a ambulância. Dois enfermeiros descem, chegam até a mulher caída e tentam colocá-la na maca. Mas são impedidos pelo parceiro, que grosseiramente, parte para cima dos dois maqueiros. Assustados recuam sem saber o que fazer. Os dois bombeiros que acompanhavam a operação de resgate ao verem aquela cena, aproximam-se para saber o que estava acontecendo. O tal marido valentão parte também pra cima dos dois bombeiros que são obrigados a se defenderem e com uma rasteira imobilizam o "valentão" no chão e o algemam. Ele é carregado para a ambulância junto com a mulher e o filho pequeno. Inconformado o individuo começa a gritar:- Solta eu moço, solta que eu sei tomar conta dela. Não preciso de ninguém. Ela é o meu amor moço... Eu preciso cuidar do meu amor.

Ele é ignorado e levado na marra, presenciado por pedestre que se juntaram no local, alguns com expressões de tristezas e outros que riam do acontecimento.

O sol já brilhava timidamente quando atravessei a rua em direção a minha casa. Escutava o barulho da sirene se afastando, eu com aquela cena toda na mente me perguntava a todo instante?- Meu Deus, que forma de amor é essa?

Crys - do Blog Jardim de Letras - http://letrasecrystais.zip.net/
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26 outubro, 2006

Da vocação de se contar histórias - por Maria Clara dos Anjos


Os primeiros registros que indicam trocas de comunicação entre os homens datam da pré-história - os desenhos de caçadas de animais nas cavernas representavam, tal como hoje, manifestações da fala, do ato de se comunicar. Hoje as diversas manifestações da fala evoluíram e podemos contar não só com os relatos orais como com tudo o que circula no universo da comunicação humana - desde a impressão de livros, jornais, revistas e tv, ao rádio e à Internet. Meios que continuam a manter viva a capacidade de comunicação entre a espécie humana, permitindo a convivência de igual para igual entre os grupos sociais.
Ora, foi com a organização dos grupos sociais que o homem passou a conviver com o contar-ouvir histórias – experiências que compreendem desde os relatos cotidianos da vida de cada um à leitura individual de um livro, ou à leitura partilhada, coletiva. O contar-ouvir histórias se dá, pois, porque desde sempre o homem sentiu a necessidade de dividir com o outro a sua vida, costumes, sonhos e ideais.
O contar-ouvir histórias envolve toda uma complexidade dos envolvidos que passa pelo simples ato de ouvir o outro com ou sem interesse a uma gama de sentimentos como: tristeza, raiva, irritação, bem-estar, medo, alegria e tantos outros que envolve a arte de contar histórias.
Na verdade, em nossos tempos já não se reúnem mais grupos em volta de um livro ou de um bom narrador, o costume de ler é bem mais solitário, individual mesmo, e poucos de nós tem o hábito de comentar com outros sobre o que leu, trocando impressões sobre o livro lido, ou muito menos nos habituamos a ler em voz alta para um ou outro interessado.
Por outro lado, a cultura do livro permanece viva e se produz em grande escala literatura em todo o mundo. A oferta de materiais de leitura é grande, sabemos, mas infelizmente há no mundo um grande número de analfabetos, pessoas que por diversos motivos não tiveram a oportunidade de se encaixar no mundo dos “letrados”.
Acredito que o relato oral, o contar histórias é de grande valia porque dá oportunidade ao outro de enveredar por um mágico e delicioso mundo, caminhando rumo ao desconhecido, mas é também não apenas conhecer um mundo novo como é descobrir-se e redescobrir um mundo de perspectivas.
Nosso grande desafio hoje é manter viva a memória dos grandes contadores de histórias, resgatar estas e propagá-las, mantendo vivo o elo entre passado e presente na escritura do livro da vida da humanidade, fazendo valer aquela velha máxima: quem conta um conto aumenta um ponto. O contar histórias é um hábito tão antigo quanto a própria existência humana - some-se a isso que ao nascer cada homem dá o pontapé inicial na escritura de sua vida e assim sua história passa a ser contada e recontada todos os dias. Portanto, é esse contar-recontar histórias que faz a vida mais bonita e mais possível de ser vivida, pois sempre que houver alguém disposto a narrar uma boa história confirmaremos que contar história fez e sempre fará parte da vida do ser.


Maria Clara dos Anjos, pedagoga, professora do Ensino Fundamental na cidade de Cajazeiras – PB é colunista convidada desta quinta-feira, no Miolo de Pote.

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23 outubro, 2006

A mãe de Brecht – por Pablo Capistrano



Para quem só conhece o camarada Bertold Brecht (poeta e dramaturgo alemão) pelo mais famoso poema dos livros didáticos de história do ensino fundamental que fala do tal analfabeto político, deve se assustar em saber que nem só de cartilhas ideológicas e militâncias políticas vivem os poetas. Brecht também teve uma mãe. Real ou poética, e entre 1913 e 1926 escreveu uma série de “salmos” (pois é amigo leitor, salmos... quem diria) nos quais as imagens de mulheres passeiam no meio da dor do poeta pela perda da mãe (real ou imaginária). Num dos poemas mais belos, traduzido para o português por Paulo César de Souza, ele diz: “Eu sei, amada: agora que me caem os cabelos, nessa vida dissoluta, e eu tenho que deitar nas pedras. Vocês me vêem bebendo as cachaças mais baratas, e eu ando nu no vento/ Mas houve um tempo, amada, em que era puro./ Eu tinha uma mulher que era mais forte do que eu, como o capim é mais forte do que o touro: ele se levanta de novo./ Ela via que eu era mau, e me amou./ Ela não perguntava para onde ia o caminho que era seu, e talvez ele fosse para baixo. Ao me dar seu corpo ela me disse: Isso é tudo. E seu corpo se tornou meu corpo./ Agora ela não está mais em lugar nenhum, desapareceu como uma nuvem após a chuva, eu a deixei, ela caiu, pois este era seu caminho./ Mas à noite, às vezes, quando me vêem bebendo, vejo o rosto dela, pálido no vento, forte, voltando para mim, e me inclino no vento”.Se as primeiras formas de religiosidade humana prestam ou não reverência a deusa com cara de mãe eu não sei. Há sinais de que essa mulher que aparece com sua face no vento está na base de boa parte dos cultos humanos que floresceram a partir do leito dos grandes rios da Ásia e que seu culto se espalhou pelo ocidente. Ísis, Tiamat, Ishtar, Ceres. Faces de uma mesma e absoluta mulher. Junto com seu culto ocultado pela força masculina do YHWH judaico, muita poesia se escreveu para nosso júbilo. Um dos registros mais antigos escritos em galego-português são as Cantigas de Santa Maria, compiladas durante o reinado de Afonso X e que se disseminaram a partir do norte de Portugal e da Espanha pela resistência celta à influência berbere na península ibérica. As Cantigas ganharam versões modernas e estão à disposição pela Internet. Alguns cristãos reformistas podem até não concordar, mas a base fundamental do culto a Maria na península ibérica, a partir dessas influências celtas, parece mesmo fazer referência ao nosso primeiro grande amor. Um amor cantado nas trovas medievais, no lirismo das musas românticas, nas imagens de olhos oblíquos e dissimulados das Capitus, nas tragédias das madames de Flaubert, na indefinição elouquecedora da Carlota de Werther, na louca morta no hospício do Kadish de Ginsberg, ou mesmo nas mamães coragem de Brecht e Torquato Neto.

Pablo Capistrano é escritor e professor de Filosofia. Escreve às segundas, no Miolo de Pote.

19 outubro, 2006

Gramática no cordel - Por Rosenval de Almeida



Há poucas gramática genuinamente diferenciadas.
Uma é aquela Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil, escrita pelo Padre Jose de Anchieta em tempos quinhentistas (1595), ainda nos primórdios da colonização lusitana nestas terras da América do Sul. Essa normatização da língua tupi tinha por fim iniciar os catequizadores da Companhia de Jesus no idioma indígena mais falado no litoral brasileiro. Pois, só assim, os padres-mestres poderiam lograr êxito na missão de cristianização da gente nativa de Pindorama.
Uma outra gramática é, seguramente, a obra Gramática no cordel, escrita pelo professor-poeta Janduhi Dantas. Trata-se de um jeito novo de se fazer arte de gramática. O autor, com o seu talento professoral e como seu gosto apurado pela poética do cordel, faz uso magistral da melodia e da métrica da sextilha em favor da língua portuguesa.
A Gramática no cordel é um convite leve e alegre ao exercício das regras essenciais dessa língua de Luis de Camões e Machado de Assis. É justamente essa peculiaridade, a fusão de gramática e poesia, que faz desse livro um instrumento didático-pedagógico de muita valia para o estudante e para qualquer pessoa que nutre interesse pelo registro formal desse idioma que aqui aportou coma as naus de Cabral. A Gramática no cordel é um engenhoso serviço prestado à escola de qualquer recanto deste Planeta em que se fale a língua portuguesa.
Parabéns! Tal atitude deve ser saudada como uma declaração de amor ao Brasil, posto o zelo ao idioma mátrio e à cultura popular brasileira. Viva!

Rosenval de Almeida – Colunista convidado desta quinta-feira. Professor de sociologia da Universidade Federal de Campina Grande.


TRECHOS DE GRAMÁTICA NO CORDEL:

Juntei, leitor, neste livro
A arte com a profissão:
No Cordel, pus a Gramática
De Português, uma paixão...
Uma idéia acalentada
Há tempos, realizada,
Isso dá satisfação!

***

Colocar acento em coco
É um erro bem danado!
Principalmente no fim
Se o acento é colocado
Pois ninguém está maluco
De beber “cocô gelado”!

***

Por meio de Genivaldo
Foi que conheci Moisés”
“Meu pai aprendeu a ler
Mediante bons cordéis”
Por meio de, mediante
E não o nome através.

***

A crase antes do verbo
Não há como colocar:
Verbo não aceita artigo
(é por isso que não dá) –
“Com dinheiro a receber,
Tenho contas a pagar”.

16 outubro, 2006

A eterna novidade – Por Pablo Capistrano


Quando me casei, Nonato Gurgel e Graça Aquino, meus padrinhos de casamento, resolveram nos presentear com um quadro. Perguntaram qual obra de um artista plástico potiguar que eu gostaria de ter na minha sala. Lembrei de uma exposição de Jota Medeiros, na UFRN, salvo engano no final dos anos noventa. Jota fazia uma leitura de diversas referências do expressionismo abstrato, inclusive Pollock. Mas sua pincelada era firme, como se gotas de tintas amarelas e vermelhas fossem impressas à força sobre um fundo escuro. As cores quentes das manchas contrastavam com o fundo frio e suas linhas grossas saltavam da tela reforçando a tridimensionalidade do quadro.
Meu filho Uriel (hoje com dez anos) costumava a admirar o quadro. Um dia eu lhe perguntei: “o que é que você mais gosta nesse quadro?”. Ele disse: “o caminhão”. Até hoje eu procuro enxergar esse caminhão no meio das manchas abstratas de Jota Medeiros, mas acho que o tempo e as banalidades da vida andaram mexendo com minha infância e deixando meu olhar mais seco para as maravilhas do mundo. A força da arte reside justamente na busca desse pasmo inicial da vida, perdido pelas forças dos fatos secos que nos obrigam a crescer e desenraizar nossa alma do solo originário que nos construiu.
Assim como uma pintura de um grande artista, a natureza nos leva ao estado essencial, a forma básica da eterna novidade do mundo. Sem esse olhar, a vida nos destrói, nos consome, nos corrompe, nos torna menores, desmonta o colorido de nossos dias e esvazia nossa vontade de viver. Nunca deixei de me espantar com a natureza. Nunca deixei de me sentir transportado para um estado de maravilhamento ingênuo quando, por exemplo, caminho de manhã na praia de Ponta Negra e sou surpreendido pela imagem do Morro do Careca. O cenário daquela duna gigantesca, tão forte e tão frágil, tão intensa e tão delicada, é, para mim, a eterna novidade de Natal. Por isso senti um frio na espinha e uma profunda melancolia, quando soube, pela Internet, que um espigão de quinze andares iria ser construído ao lado do morro. Sei que é difícil entender isso. Sei que, para os homens de negócios, que costumam a passar muito tempo calculando lucros e riscos, pode soar uma ridícula banalidade impedir um empreendimento que injetaria um zilhão qualquer de euros na economia da cidade.
Posso ser só mais um idiota ingênuo, um sonhador romântico assolado por forças invisíveis e por idéias inúteis e perigosas. Posso estar errado, mas sinto que a vida não seria a mesma se, ao lado do meu morro, um gigante de concreto e vidro me obrigasse todo dia pela manhã, a lembrar que a beleza também morre.
Talvez eu fique mais rico, compre mais livros, viaje mais para a Europa, troque de carro todo ano, ou mesmo possa comprar novas obras de arte para decorar minha sala de estar, se o mercado imobiliário transformar Ponta Negra em alguma espécie bizarra de Manhatan dos trópicos. Não sei. Só sei que minha praia perderia seu encanto. Sei que tudo passa, que tudo flui e que a natureza não criou nada que seja imutável. Mas sei também que, se um dia, meu morro tiver que disputar meu olhar com um prédio de quinze andares, uma parte substancial da alma do lugar em que eu nasci vai se perder. Sei que um dia, o mar vai levar meu morro embora, mas queria ter a oportunidade de vê-lo inteiro e sozinho em seu cenário por mais alguns anos. De preservar, da angulação original, sua beleza transportadora. De poder partilhar o meu pasmo essencial com meus filhos, de fazer com que essa beleza possa carimbar seu encantamento na memória deles, como carimbou na minha. Não sei quanto dinheiro vou ter que gastar para indenizar o prejuízo dos digníssimos investidores. Só sei que a arte (a beleza) existe para que a verdade não nos destrua. E isso não tem dinheiro no mundo que pague.

Pablo Capistrano é escritor e professor de filosofia. Escreve às segunda no Miolo de Pote.

Imagem: http://img167.exs.cx/img167/306/jota5ys.jpg