12 março, 2007

Filósofos e Juízes - Por Pablo Capistrano


Pablo Capistrano
http://www.pablocapistrano.com.br/

O mundo anda tão sinistro que peço licença ao amigo leitor, para iniciar uma série de artigos sobre um tema técnico. Calma. Não se preocupe. Meu objetivo aqui não é o de assustar ninguém com um rosário de citações estranhas e termos intrincados. Lembro da declaração do sábio Akiba, que viveu na Palestina entre os anos 40 e 135 d.c.: “Se tivesse em meu poder um intelectual, o espancaria como a um jumento!”. Pois bem, como vivemos numa época em que intelectuais correm o sério risco de serem espancados como jumentos (se alguém prestar atenção no que eles dizem, é claro) então vou procurar, nessa série, me afastar, por motivos de segurança e manutenção da minha integridade física e da minha propriedade literária, de jargões lingüísticos e de intricados conceitos técnicos.
Falar de filosofia em linguagem de gente normal é uma tarefa difícil. Às vezes, mais difícil do que falar de filosofia na linguagem técnica de um filósofo. É como pedir a um neurocirurgião, que explique no jornal do meio dia, para a dona de casa e o estudante de nível médio brasileiro, a diferença entre um aneurisma cerebral e um derrame. No final das contas, é necessário algum poder de síntese, alguma falta de pudor em falar as coisas de modo impreciso, um certo descompromisso com o rigor dos conceitos, uma boa dose de humor e uma leve e distante vontade de que as pessoas entendam o que você está dizendo.
Ou seja, tudo aquilo que um filósofo acadêmico despreza.
Mas a filosofia é assim mesmo. Ela ama esconder-se. Quando mais você corre atrás dela, mas parece que ela foge de você. Por isso, na origem, o termo filósofo, ganhou essa conotação: “amante do saber”. Se tivesse a ver com o Direito o termo correto seria: “marido do saber”. Sim, porque, oficialmente quem sabe das coisas é o bacharel. Ele é o marido do saber. De papel passado, com direito a regime de separação parcial de bens e solidariedade familiar em caso de Divórcio. O juiz, ao contrário do filósofo, fez um concurso e por isso está casado com a sabedoria. Dorme com ela, acorda de manhã, toma café, almoça, janta e assiste as partidas da Copa do Brasil, na quarta à noite, enquanto ela, entediada, come um saco de pipocas no sofá.
O filósofo, que difere do juiz justamente por não ter emprego público (a não ser como professor) e pelo salário, é o “amante da sabedoria”. Encontra-se com ela nos motéis clandestinos da verdade ou nos restaurantes psicodélicos da argumentação. Livre do tédio conjugal, o filósofo se ressente de não ter esse vínculo oficial com a sabedoria, ao passo que o juiz, sonha em se livrar dele (mantendo, é claro, o salário e pagando o mínimo de pensão alimentícia).
Para se entender a natureza da filosofia é preciso remontar a relação entre filósofos e juízes, que está tão bem retratada no diálogo Eutífron, de Platão. Lá, Sócrates (o Ricardão da Filosofia) se encontra na escadaria do templo com Eutífron (o juiz, esposo da dita cuja). O juiz tem a obrigação pública de dizer o que é a justiça. Sócrates não. O juiz tem o dever de não entrar em contradição e explicar as perguntas que lhe são feitas. Sócrates não. O juiz está atrasado para mais uma audiência. Sócrates passa o dia na praça do mercado batendo papo com os amigos e fica irritado quando Xantipa, sua mulher, vem reclamar que não tem nada para cozinhar na hora do almoço. O juiz fica constrangido quando não consegue achar uma solução para o problema proposto por Sócrates (“O que é a justiça?”) e se envergonha quando deixa claro que a sabedoria só está casada com ele de papel passado, mas que se diverte com o filósofo nas horas vagas. Sócrates sente orgulho de “saber que nada sabe” e sua grande curtição é ficar procurando sua amante pelas ruas, esperando a hora em que ela resolva dar uma “rapidinha” antes de voltar para o templo, para o fórum, ou para o palácio real prestar expediente. Saber porquê algumas pessoas preferem ser juizes ao invés de filósofos é algo difícil, especialmente quando você não faz uma comparação dos contracheques. Nos próximos artigos vamos tentar compreender um pouco mais a natureza dessa estranha relação que os homens mantêm com essa tal “sabedoria”.

06 março, 2007

(Repostagem)

HOMENAGEM A

GABRIEL GARCIA MÁRQUEZ – 8O ANOS



Gabo para iniciantes
Por Adalberto dos Santos

O que é verossímil e o que não numa ficção, ou quais os limites que separam o real do fantástico em literatura? Questões que desde há muito fazem os estudiosos e que, muitas vezes, acompanham o leitor no ato mesmo da leitura quando diante de um enigmático emaranhado de fatos e relatos para os quais nem sempre obtém respostas. É o que se diz da leitura de um Kafka, de um Gabriel Garcia Márquez. Essa literatura causa certo estranhamento aos que nela se iniciam. Claro, literatura recheada de artifícios artísticos que, dominantes no texto, espantam o leitor. Por outro lado, em tal ficção, são os modos autênticos de expressão da realidade que proporcionam a grandeza poética através da qual ocorre o prazer estético esperado no ato de ler.
Em Garcia Márquez, confessadamente influenciado pelo autor de O processo, o estranhamento é alentado por uma linguagem acessível, de teor bastante coloquial, embora os elementos ficcionais presentes nas obras envolvam de tal forma o leitor que este se veja assaltado em sua sensibilidade, a ponto de questionar: isto é aceitável, é razoável, é verossímil? Tomemos Cem anos de solidão.
Romance mais popular de Garcia Márquez, traduzido para quase 40 idiomas, com mais de 30 milhões de exemplares vendidos no mundo inteiro, Cem anos de solidão (1967) narra a trajetória dos fundadores de Macondo ao longo de um século de história. Aldeia imaginada por Márquez, localizada num ponto remoto e distante de toda civilização, em Macondo conhece-se os Buendia (Úrsula Iguarán, José Arcadio, Amaranta, José Arcadio (filho), o coronel Aureliano Buendía, protagonista, Rebeca Montiel, Melquíades - os dois últimos, espécie de Buendía por adoção) e mais não sei quantos personagens que entram e saem de Macondo, morrem, desaparecem, enlouquecem e testemunham os mais extraordinários acontecimentos. Situações que extrapolam o convencional, aquilo que razoavelmente aceitamos como lógico e temos como próximo de uma realidade plausível.
Há vários exemplos na narrativa, como a epidemia de insônia que afeta toda a Macondo, deixando a população sem dormir, sem lembrar os nomes das pessoas, dos objetos e da própria identidade, o dilúvio que dura mais de quatro anos, ininterruptamente, mortos que conversam com vivos, moças que voam, personagens que sobrevivem a seqüências de pestes e doenças de todos os tipos. Diante de tais episódios, inevitavelmente a pergunta: como é possível?
Diríamos ao leitor surpreso, em linguagem atual, que ele está diante do que se pode chamar de “efeitos especiais da ficção”. Aí a ficção dá um giro maior que o mundo real do leitor e por isso o espanta. Acuado, ele não foge: é decifrar a charada ou perder a aposta. Em linguagem crítica, explica-se que se trata de uma realidade estritamente literária (apesar de poder ter sua origem em dados reais, vividos pelo escritor e recriados a seu modo), mas nem por isso menos real ou lógica que não possamos entendê-la.
O estranho dos acontecimentos responde pelo poético nome de “realismo mágico”, ou “realismo fantástico”, prática ficcional de que faz uso Garcia Márquez em seu trabalho artístico e que consiste, segundo João de Melo, numa atividade simples e simultaneamente deslumbrada, recorrendo aos grandes temas sociais, sem dúvida, mas envolvendo as realidades descritas numa auréola de sonhos, crenças e rituais lendários. Assim, no mundo imaginário criado pelo artista, tudo é possível, e tudo se explica, os acontecimentos mais improváveis ganham uma lógica própria, porque possíveis e explicados no próprio contexto da narração. E há uma definição de Gabo para o romance que se encaixa perfeitamente na descrição de “realismo fantástico”: "Acho que um romance é uma representação cifrada da realidade, uma espécie de adivinhação do mundo. A realidade que se maneja num romance é diferente da realidade da vida, embora se apóie nela. Como acontece com os sonhos" (palavras de Márquez em Cheiro de goiaba, 1982).
Por “realismo mágico” entende-se ainda grande parte da arte feita na América Latina na década de 50 do século XX por autores que juntavam a tais procedimentos estéticos o diálogo com a realidade latino-americana, daí ora ser chamado de “realismo mágico latino-americano”, com estatuto de gênero literário surgido quando do lançamento de Cem anos de solidão.
Embora a noção de um procedimento que explica a existência de alguns acontecimentos na ficção de Garcia Márquez, temos que as experiências de vida do escritor de alguma forma também lhe tocam a obra. Não por pura confissão, mas, como disse Gabo (apelido do escritor), porque a história da vida de cada um não é apenas o que se viveu, mas o que se lembrou e o que se contou sobre ela. As palavras de um escritor num romance podem ser, pois, parte de sua experiência real, como muitas vezes sugeriu o Nobel de 1982.
Macondo, sabemos, Macondo não existe, mas vive nas lembranças do escritor como um reflexo do povoado da costa atlântica da Colômbia chamado Aracataca, onde Márquez nasceu aos 06 de março de 1927. Jose Arcadio Buendía, pai do protagonista, Aureliano, é um pouco o avô de Gabo, o coronel Márquez, e, de alguma forma, o próprio Aureliano, herdeiro da solidão dos Buendía e personagem recorrente nos romances do colombiano. O coronel Aureliano Buendía torna-se tão importante na obra de Gabo que o encontramos em mais dois de seus livros, El coronel no tiene quien le escriba (1961) e Crónica de una muerte anunciada (1981). Recentemente li que o personagem também aparece num conto do escritor intitulado “Los funerales de la Mamá Grande".
Bem, Arcadios e Aurelianos à parte, é sempre um prazer ler a literatura de Gabo: é como adivinhar o mundo, magicamente.